Já atuava na mídia em Brasília quando, em 1990, numa manhã cinzenta dos tempos de temperaturas desertas do Planalto Central, Joaquim Francisco, eleito prefeito do Recife com apenas um ano e meio de mandato, exagerando no arrastado sotaque de matuto, me surpreende com um convite: coordenar a sua área de Imprensa da campanha a governador. Quase imberbe, apenas 27 anos, não tinha a menor noção do que seria enfrentar uma campanha ao Palácio do Campo das Princesas.
Especialmente, porque o adversário de Joaquim não era um político qualquer, mas um mito de esquerda – Jarbas Vasconcelos. Tremi. Achava que não tinha a menor capacidade, o menor talento nem disposição para tal empreitada. Na minha frente, gesticulando com suas mãos agigantadas, me impressionou a disposição dele de me trazer de volta a Pernambuco. Resisti até onde foi possível, até um dia o telefone tocar com uma ameaça: “Estou precisando dos seus préstimos. Já emiti seu bilhete. Você não pode faltar a Pernambuco”.
Foi uma campanha histórica, de momentos memoráveis, um clássico político, na qual aprendi a ser vidraça depois da prática permanente de estilingue como repórter. Na convivência com Joaquim, que os adversários tachavam de direita, mas que arregimentou forças de esquerda e mitos da arte para derrotar Jarbas, como Alceu Valença, seu colega na Faculdade de Direito do Recife, fui conhecendo um homem que não abria mão dos seus princípios éticos e morais, zeloso, de elevado espirito público.
Joaquim me surpreendeu com gestos largos, generosos, de homem honrado, da escola de Marco Maciel, Roberto Magalhães, Gustavo Krause, José Jorge e Joel de Holanda, escola do respeito ao alheio, dos que cospem labaredas de fogo naqueles mal-intencionados com o dinheiro público. Isso me estimulou, após sair de uma campanha vitoriosa, a adiar o projeto de voltar a Brasília. Virei porta-voz de um governo que não foi o dos sonhos de Joaquim, mas o possível, com uma marca: livre de escândalos.
“É proibido roubar”, dizia ele, em sermões diários aos auxiliares. No Governo, só fiquei um ano, mas ao final da sua gestão, já de volta a Brasília, o encontrei com o mesmo patrimônio, levando o mesmo estilo de vida simples de homem de classe média. Brigamos por discordâncias gerenciais e políticas, mas nada que provocasse uma separação irreconciliável. Agradeço a Joaquim por ter me proporcionado uma oportunidade única: conhecer os bastidores fervorosos de um governo, as intrigas que a Imprensa passa desapercebida, os segredos de Estado que devem ser levados ao túmulo.
Ensinou-me Joaquim que todo homem público, notadamente os mandatários (investidos de mandato conferido pelo povo através do voto), devem dar exemplo, pois são eleitos para trabalhar em prol da população. Tanto na vida pública, quando na vida privada, devem dar exemplo de moral e honradez, mediante atitudes decentes e cidadãs. Aprendi, igualmente, que honestidade não é virtude de homem público, mas sim obrigação.
Joaquim não tolerava corrupção nem corruptos. Dizia que a pior forma de corrupção do homem público é corromper as suas ideias e se entregar a conveniência de exercer o poder a qualquer preço. Entre tantas lições, Rui Barbosa dizia que o homem que não luta pelos seus direitos não merece viver. Joaquim era como Rui Barbosa: não trocava a justiça pela soberba, não deixava o direito pela força, não esquecia a fraternidade e a tolerância, não substituía a fé pela superstição, a realidade pelo ídolo.
Noticia triste – Fui o primeiro jornalista a ser informado do quadro de saúde irreversível de Joaquim, através de um amigo da família. Seu câncer começou pelo reto, subiu para o pâncreas, se espalhou pelo intestino e chegou até os pulmões. Dei uma notícia discreta, o suficiente para o próprio Joaquim me ligar. Naquele telefonema me dizia que estava superando a fase mais difícil e que sairia da linha de risco. Chegou a me convidar a andar na Jaqueira, parque que criou como prefeito do Recife e que frequentava todos os dias quando estava na cidade.
Sonho de viver – Na batalha contra o câncer, Joaquim recebeu alta do hospital Português, como havia me informado, mas dez dias após teve uma piora do seu quadro e foi novamente submetido a uma pequena cirurgia. Em seguida, entrou na fase mais difícil: as sessões de quimioterapia. Entre uma e outra volta ao leito do hospital falei com ele umas três vezes. A última, me disse que estava bastante confiante na recuperação. Eu ouvia e dava forças, mas sabia que ele próprio não sabia da triste realidade, porque seu sonho de viver era maior do que tudo.
Coca no café da manhã – Quando vivi 14 horas do meu dia ao lado de Joaquim, seja na campanha ou como secretário de Imprensa, me impressionava alguns hábitos estranhos, um deles de tomar Coca-Cola no café da manhã. Nosso hotel em Brasília era o Heron, no Setor Hoteleiro Norte. Ele descia de pasta na mão, tomava os remédios de controle da sua pressão arterial, comia dois pães de queijo com coca e se dava por satisfeito. Matuto do interior, acostumado a tomar café da manhã com cuscuz e bode, confesso que aquilo me intrigava muito.
O fio da morte – Nos seis primeiros meses de Governo, Joaquim pegou mania de vistoriar obras de helicóptero. Vivíamos no ar, para baixo e para cima. Certo dia, não partimos para a eternidade graças ao então secretário de Governo, Augusto Costa. O piloto fazia os procedimentos para o pouso sem ater-se pela frente um fio de alta tensão, mas teve uma habilidade genial para nos livrar de uma explosão quando Augusto gritou “olha o fio”.
Banho em Boa Viagem – O episódio mais importante estava por vir: a crise do cólera, que obrigou Joaquim a interditar a praia de Boa Viagem. Colocou soldados da artilharia com cavalos para impedir a presença de qualquer banhista. É que a então secretária de Saúde, Ângela Valente, havia adentrado no gabinete do governador com um laudo de que água do mar provocava o contágio da cólera. Após o fechamento da praia, fomos a Brasília e lá, depois de uma solenidade, o então presidente Collor sopra no ouvido de Joaquim a necessidade de ele tomar banho em Boa Viagem, do contrário o povo não ia mais frequentar a praia. Foi capa no dia seguinte de todos os jornais brasileiros e até no Exterior. Os detalhes da história estão no meu livro Histórias de Repórter.
CURTAS
AVENTURA – Outro fato que nunca esqueço: Joaquim inventou de presenciar uma queima de maconha em Cabrobó. Se tivéssemos ido de jatinho, uma hora, no máximo. Ele botou na cabeça que queria descer no local do fogaréu. Resultado: cinco horas de voo, com escala técnica de abastecimento em Paulo Afonso (BA). Haja saco!
TRANSIÇÃO E TRANSAÇÃO – Escolhido ministro do Interior no Governo Sarney, Joaquim só ficou no cargo 90 dias. O pivô da sua saída foi o então superintendente da Sudene, Dorany Sampaio, ligado a Jarbas Vasconcelos. Joaquim perdeu a paciência, convocou a Imprensa para uma coletiva e cravou a seguinte frase: “Esse não é um governo de transição, mas de transação”. E pegou o bonde.
Perguntar não ofende: Qual o maior legado de Joaquim Francisco?
Fonte: Blog do Magno Martins.
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