domingo, 30 de outubro de 2022

Reconstruir um país fraturado será desafio para o próximo presidente

 

Houve um tempo em que as mais apaixonadas discussões políticas costumavam desencadear apenas disparos retóricos contra os adversários nas campanhas. Terminada a contabilização dos votos, os perdedores se entrincheiravam na oposição, aceitando o resultado e dando sequência ao jogo democrático.

Eram tempos românticos quando comparados ao que se vê na atualidade. Inédita em níveis de agressividade, a atual batalha pelo Palácio do Planalto contaminou o país com uma mistura tóxica de ódio pessoal e de polarização ideológica, não raro descambando para tiros de verdade, como se viu no último domingo, 23, quando o ex-deputado Roberto Jefferson recebeu a balas e granadas uma equipe da PF encarregada de cumprir contra ele um mandado de prisão expedido por Alexandre de Moraes, ministro do STF e atual presidente do TSE. As informações são da revista Veja.

“Nunca vi nada igual”, diz o ex-presidente Michel Temer, com base na experiência de ter disputado oito eleições (seis para o Congresso e duas como vice na chapa de Dilma Rousseff). “Na minha época, eram registrados alguns atos mais agressivos, mas não havia esse nível de violência”, afirma.

Além da disputa levada às vias de fato em mais de um episódio trágico da campanha (sinal dos tempos, o papa Francisco chegou a pedir recentemente à Nossa Senhora Aparecida que livre o brasileiro do ódio), nunca se viu também tamanha contestação às autoridades encarregadas de arbitrar as eleições, que vai das críticas à lentidão do TSE no combate à saraiva de fake news e chega até a contestação da lisura do pleito, feita à base de argumentos aloprados a respeito da confiabilidade das urnas eletrônicas.

Como reflexo dessa confusão, boa parte dos adeptos de Jair Bolsonaro e de Luiz Inácio Lula da Silva se dedica a desqualificar os adversários, imbuídos do espírito de guerra do bem contra o mal.

Até a proximidade da Copa, tradicional catalisador da união nacional, transformou-se em motivo de divisões. A “amarelinha” virou uniforme do bolsonarismo e o engajamento de Neymar na campanha do presidente atirou o craque no caldeirão de ódio dos petistas. Por essas e outras, a polarização política que conhecemos há alguns anos (PT e PSDB competiam de maneira acirrada desde 1994) extrapolou para a chamada polarização afetiva, que ocorre quando um enxerga o outro como inimigo.

“As pessoas acham inaceitável a opção de voto adversária”, afirma o cientista político Felipe Nunes, diretor da Quaest Pesquisa e Consultoria. Um levantamento recente da empresa mostrou quanto o fenômeno respinga no campo pessoal: dos 2 000 entrevistados, 41% dos lulistas não queriam ver um filho casado com um bolsonarista, ante 33% do outro lado.

Diante desse clima, é certo que haverá um rescaldo de ódio e ressentimento pairando sobre o país após o anúncio do resultado. Dentro dessa óptica, a eleição não acaba no dia 30.

Um dos pontos centrais para atenuar o clima de “terceiro turno” serão os primeiros passos do vencedor no período de transição e, sobretudo, sua postura no início do governo. O eleito sempre chega embalado pelo poder das urnas para promover o que precisa ser feito, mas, no atual cenário de radicalização, esse período adquire uma relevância ainda maior. Além de sinalizar que precisa governar para todos, o vitorioso deverá entender que encontrará um país estressado, fraturado e que precisa se recompor.

“A primeira coisa é um discurso para quem não votou nele, chamando para conversar, dizendo que foi eleito o presidente de todos”, afirma Cristovam Buarque, que foi ministro de Lula. O ex-presidente, a propósito, preocupou-se em fazer sinais nessa direção nos últimos dias, prometendo que, em caso de vitória, não fará um governo do PT, mas do povo brasileiro. “Lula formará uma equipe de governo plural e vai dialogar com todos os setores”, diz José Eduardo Cardozo, ministro da Justiça de Dilma Rousseff. Mesmo entre as hostes bolsonaristas há a percepção de que, em caso de reeleição, o presidente precisará adotar um comportamento diferente dos últimos anos, quando as atitudes do chefe do Executivo foram os principais geradores de crises institucionais e cristalizaram um estilo de governar rejeitado hoje pela metade da população.

“Bolsonaro é capaz, sim, de fazer uma espécie de conciliação do país. Ele poderá trazer para o alinhamento dos nossos projetos aqueles que não são a direita raiz, pois o Brasil precisa ter um arrefecimento dos ânimos para caminhar para a frente”, afirma o ex-ministro Ricardo Salles, que acaba de se eleger deputado federal pelo PL-SP.

A tradicional lua de mel do governo recém-eleito será também fundamental para garantir consensos necessários em questões mais urgentes, como a ginástica orçamentária para manter o auxílio emergencial e a viabilização de reformas importantes, como a tributária. O Centrão, como sempre, terá um peso decisivo na estabilidade. Bolsonaro leva vantagem na configuração da nova legislatura, com um Congresso mais à direita saído das urnas e uma base de apoio já construída ao longo do seu mandato.

“O importante é o governo ter clareza das propostas, como foi com a reforma da Previdência. A diferença é que, com a eleição do Bolsonaro, as propostas já estão prontas. O tempo que um governo novo levará para formular essas propostas é o tempo que levará para nós aprovarmos”, defende Ricardo Barros (PP-PR), líder do governo Bolsonaro na Câmara.

Já Lula terá de fazer um esforço maior para governar, mas há campo para avançar. Conhecido pela “flexibilidade”, o Centrão deverá se movimentar no sentido de negociar com o presidente eleito, seja ele qual for — o bloco parlamentar, conhecido pelo apetite por cargos e dinheiro, já apoiou FHC, Lula, Dilma e Temer.

“O Congresso é aberto a negociação, o que exige determinação, paciência e firmeza”, diz Henrique Meirelles, que foi presidente do BC no governo Lula e, depois de passar pelo governo tucano em São Paulo, está novamente na base de apoio do ex-presidente.

A reconstrução de um país fraturado, no entanto, não passa apenas pelo entendimento entre Executivo e Legislativo, mas também pelo Supremo Tribunal Federal, o terceiro vértice da Praça dos Três Poderes. A principal corte judiciária do país, da qual se espera um papel moderador no embate entre as instituições, passou a ser combustível do ambiente de radicalização na medida em que foi alçada por um dos lados da guerra ideológica, o bolsonarismo, à condição de adver­sária política.

Nos últimos anos, o Supremo mostrou força para evitar retrocessos e arroubos autoritários, mas passou também a receber críticas justas por causa de decisões polêmicas, como a censura a opiniões veiculadas por alguns veículos de imprensa. “A atuação do Supremo tem sido um pouco trepidante, potencializando-se um objetivo, às vezes, em detrimento do meio”, diz o ex-ministro Marco Aurélio Mello.

Tirar o STF do tiroteio político e trazê-lo de volta para uma atuação eminentemente técnica na defesa da Constituição é um movimento necessário, mas de complexa execução nos próximos anos, pelo fato de que o futuro presidente terá a prerrogativa de indicar dois ministros para os lugares de Ricardo Lewandowski e Rosa Weber, que se aposentam. Não é pouca coisa. Se Bolsonaro, que nunca escondeu o seu desejo de mudar o perfil da Corte, vencer a eleição, ele terá chegado a indicar quatro dos onze ministros do STF.

O esforço de apaziguamento da nação depende muito ainda do comportamento de quem for derrotado em 30 de outubro. Será trágica a repetição do período pós-eleição de Dilma, em 2014, quando Aécio Neves (PSDB), logo após o resultado apertado — como promete ser o pleito deste ano —, questionou o resultado da votação, pedindo inclusive a auditoria das urnas. O procedimento não constatou nenhuma irregularidade, mas abriu caminho para um início de mandato maculado pela desconfiança da opinião pública.

“A linha foi ultrapassada ali. É como se o vale-tudo ganhasse uma proporção maior”, afirma Renato Meirelles, fundador do instituto de pesquisas Locomotiva. A semente de insatisfação plantada em grande parte do eleitorado naquele momento e o desastre econômico do governo Dilma abriram caminho para as gigantescas manifestações populares pelo impeachment e erodiram de vez a base política do governo.

O tamanho e o papel da oposição também serão determinantes para o futuro do bolsonarismo e do lulismo. Se o ex-presidente, aos 77 anos de idade, for derrotado, estará encerrando sua carreira eleitoral. E é difícil imaginar qual será o futuro da esquerda, uma vez que o ex-presidente se tornou maior que os partidos que o apoiam, inclusive o PT. Não há dentro de um cenário próximo nenhuma outra liderança nacional capaz de ocupar esse espaço.

No caso de Bolsonaro ser derrotado, é quase certo que o bolsonarismo sobreviverá nas redes sociais e nos movimentos e ambientes mais radicalizados da política, mas talvez não na representação política institucional. Ao contrário de Trump, que controla o Partido Republicano, um dos polos da arena política dos EUA, Bolsonaro não tem um partido para chamar de “seu”. O PL, comandado por Valdemar Costa Neto, já foi aliado dos governos petistas — assim como outras legendas do Centrão, que são guiadas pelo governismo e pelo instinto de sobrevivência e que já caminharam de mãos dadas com o petismo.

O ambiente de radicalização vivido atualmente pelo país é bastante recente — para ser mais exato, está completando dez anos. A semente começou a ser plantada nas manifestações de junho de 2013, quando milhares saíram às ruas do país, inicialmente para protestar contra as tarifas de ônibus, mas que rapidamente evoluíram para o discurso do “contra tudo o que está aí”, que deu vazão ao sentimento da antipolítica e tirou do anonimato uma parcela expressiva do eleitorado de direita, que se sentiu à vontade para defender bandeiras que iam da defesa de pautas moralistas a pedidos pela volta da ditadura militar.

Os movimentos ganharam corpo com as investigações da Lava-Jato, surgida em 2014, que expôs a podridão dos partidos tradicionais, e desembocou no impeachment de Dilma, que a um só tempo escanteou o petismo, encurralou o PSDB e permitiu a ascensão de Bolsonaro. Muitos dos elementos que incendiaram as ruas há dez anos estão presentes na radicalização atual.

Aliado mais à esquerda de Lula, o presidente do PSOL, Juliano Medeiros não acredita ser possível superar a polarização política. “O fenômeno tem a ver com a crise da democracia liberal no mundo todo, é global e não vai desaparecer com a eleição”, acredita.

Nem todos concordam com essa visão mais pessimista. Um dos maiores estudiosos da atualidade sobre democracia, o cientista político americano Brian Klaas, que é ligado à University College de Londres e articulista do jornal The Washington Post, reconhece o momento difícil do Brasil, mas vê uma luz no fim do túnel. “Uma reforma sistêmica para afastar do poder os maus políticos é a única maneira de o país sair dessa confusão no longo prazo”, afirmou ele a VEJA.

Os primeiros passos nessa direção precisam ser dados pelo vencedor do pleito, em harmonia com a vontade popular, com o novo Congresso e com o Judiciário. Dos escombros da atual batalha é que sairá o futuro do país. O horizonte mais promissor passa necessariamente pelo árduo trabalho de união do Brasil. Mãos à obra, portanto.

Fonte:Blog do Magno Martins.

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