Por Paulo Rebêlo, em artigo enviado ao blog
Quando o Estado pede que as pessoas fiquem em casa, por causa de um vírus mortal e sem cura, esse mesmo Estado espera que a sociedade acredite nas evidências científicas e confie na palavra do governo.
Pense bem: como é que a gente espera que as pessoas atendam (e entendam) um pedido que vem justamente de onde a sociedade menos acredita?
Pesquisas e evidências empíricas, desde as últimas décadas, mostram que não importa qual seja o partido político ou a unidade federativa: a política e os políticos são cada vez menos levados a sério pela maioria da população.
E diferentemente da contaminação por coronavírus, essa curva (de credibilidade) sempre aponta para baixo. Piora a cada ano, a cada eleição, a cada promessa de campanha não cumprida, a cada aumento de passagem, a cada novo imposto criado, a cada caso abafado de corrupção.
Não é um fenômeno brasileiro, nem exclusivo da América Latina, embora o Brasil seja e continue a ser destaque internacional no descrédito político entre os países em desenvolvimento — expressão que não passa de um eufemismo geopolítico para ilustrar países pobres, pouco industrializados e com instituições públicas frágeis.
Agora esqueça as evidências, as pesquisas e a sociologia por um minuto.
Façamos uma nova reflexão.
Quando um governo e seus representantes esperam que a sociedade compreenda a gravidade da pandemia de Covid-19, muitas vezes esse mesmo governo sinaliza de várias maneiras que atua como Alice no País das Maravilhas: governando para um novo mundo, repleto de animais e objetos antropomórficos, que falam e se comportam como seres humanos, mas que não são exatamente seres humanos.
Porque os seres humanos de verdade, para quem o governo fala e pede por quarentena, são filhos e netos das piores políticas públicas de educação primária que você possa imaginar.
São alunos de um sistema cruel e muito bem arquitetado para perpetuar a ausência de pensamento crítico e isolar o conhecimento na mão de pouquíssimos privilegiados.
E mesmo dentro desse pequeno universo de privilegiados, temos um lado que considera a leitura uma perda de tempo e um outro lado que não consegue ler porque é incapaz de interpretar textos didáticos e se concentrar em mais de três parágrafos de forma contínua.
As redes sociais conseguem provar que esses dois lados não formam sequer dois neurônios.
Sejamos otimistas (por um minuto) e vamos esquecer as pesquisas, as evidências sociais e a educação pública dos últimos quarenta anos.
Façamos uma terceira reflexão.
Quando um governo corretamente pede para as pessoas ficarem em casa e corretamente fecha o comércio local, e também corretamente toma uma série de medidas restritivas, é esperado que as pessoas vejam isso acontecer igualmente para todos, com dedicação pública e fiscalização.
Mas como vamos levar a sério um conjunto de restrições que só valem para determinados bairros ou regiões?
Dentro de um mesmo Estado, tudo que o cidadão precisa é percorrer por 15 minutos qualquer rodovia estadual para perceber que alguns estabelecimentos ignoram a lei e o governo de forma aberta e transparente. A depender do bairro, nem é preciso andar por 15 minutos.
Na mesma rua, todos parecem o Chapeleiro Louco morando no mesmo país das maravilhas habitado por Alice e por boa parte dos governos municipais e estaduais.
Há fiscalização e conscientização de um lado, enquanto do outro há apenas a perpetuação do enorme obscurantismo que por décadas norteia nossa gestão pública.
Enquanto uma fração da sociedade se aproxima do terceiro mês de um crise de saúde pública sem precedentes, uma outra e enorme fração lhe pergunta: por que você está de máscara?
O que está acontecendo?
Por que as pessoas não estão abrindo o vidro do carro para me dar dinheiro no semáforo?
Por que os restaurantes estão fechados e não tem mais comida no lixo para eu levar para meus filhos?
Três meses. De tanta informação, tanta “live”, tanto boletim em tempo real, tanta internet rápida, tanto noticiário 24h, tanta rede social, tanta vaquinha virtual, tanto apelo, tantas doações, tanta fartura tecnológica e muitos governos (e cidadãos) não querem entender que quem está na rua, fora da quarentena, não é apenas quem vive na rua.
Quem está na rua também é quem não tem água em casa para lavar as mãos porque no ano de 2020 nós temos semicondutores eletrônicos de 5 nanômetros, mas ainda estamos ajustando planilhas para saber se haverá orçamento disponível para levar água não-potável às pessoas.
Sim, água não-potável, água suja mesmo, porque água potável ainda é uma utopia, uma surrealidade, um roteiro de ficção científica até mesmo nas capitais mais ricas do Brasil.
E saneamento básico, então, ainda parece uma grande piada.
Quando governo e governantes se levarem a sério, talvez seja mais fácil pedir que a sociedade também os leve a sério.
Até lá, muitos ainda vão morrer apesar dos esforços tardios do poder público. A crise causada pelo novo coronavírus talvez seja um dos poucos momentos, se não único, que governos municipais e estaduais tentaram colocar a vida humana em primeiro lugar.
Infelizmente para nós, que não estamos no país das maravilhas, a maior vítima da Covid-19 seguirá sendo a ignorância. Esta, sim, não escolhe classe social, geografia ou partido. Levou décadas para ser criada, levará outras décadas para ser desmontada. Se é que será um dia.
Paulo Rebêlo é Mestre em Políticas Públicas, Mestre em Gestão de Mídia, diretor da Paradox Zero e editor na Paradoxum
Fonte: Blog de Jamildo.
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